Tár

o cinematógrafo
5 min readFeb 27, 2023

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Esse texto foi originalmente postado em Vertentes do Cinema

Para o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, a inteligência de uma pessoa é definida com base na sua sensibilidade a ruídos, ou pelo menos é o que conta um dos personagens a Lydia Tár (Cate Blanchett). A regente estampa um perfil sério e visivelmente inabalável. A indiferença contumaz se estende a quase tudo ao seu redor, às pessoas, às preocupações alheias e aos anseios dos demais. A sensibilidade é aflorada pontualmente por meio dos sons. Uma campainha incessante se torna um tormento e um motivo melódico para a nova composição, o metrônomo a acorda no meio da noite e um grito na floresta a faz desviar de seu curso da corrida matinal. Em “Tár”, drama dirigido por Todd Field, a protagonista passa a ser suscetível e sensível aos barulhos, ao mesmo tempo em que precisa lidar com as estrondosas consequências de suas ações. Toda impassibilidade mingua aos poucos, em uma espiral dramática de desabamento emocional e profissional.

Vencedora do EGOT (Emmy, Grammy, Oscar e Tony), co-fundadora da Fundação Accordion e a primeira mulher a ser regente da Orquestra Filarmônica de Berlim. Todos esses méritos de Lydia Tár são apresentados em sua entrevista para a revista The New Yorker. Field, também roteirista do longa, estabelece na introdução a maestro (não maestrina, porque ela recusa a forma feminina da palavra) como uma figura crível e dotada de extrema verossimilhança. Essa pequena biografia e a página na Wikipédia são elementos que atribuem um realismo à personagem que leva ao questionamento: “Será que é uma pessoa real?” Por esse motivo, o filme foi considerado por alguns uma cinebiografia de um personagem ficcional. O primeiro contato do público com a regente é por meio dessa definição de Google, sem a menor pessoalidade. Ela se apresenta e se revela de forma técnica e profissional, explica a influência de Mahler em sua obra — compositor cuja 5ª Sinfonia ela irá conduzir –, conta sobre composições e reflete a importância do controle do tempo ao conduzir uma orquestra.

Nesses momentos, a obra pende a um hermetismo e academicismo quase restritivo, é um extenso leque de referências que os não versados em música erudita podem estranhar. O filme, contudo, não se trata apenas da música em si, há a exploração das relações pessoais e profissionais da maestrina. “Tár” se divide, portanto, na esfera pessoal, a casa, e na esfera profissional, a Orquestra. Os dois ambientes ostentam riqueza e luxo em arquitetura contemporânea. O caráter asséptico dos ambientes é reforçado pela simetria na fotografia, mas que para representar dramaticidade utiliza os corredores como molduras que comprimem as personagens. Em casa, Lydia vive com sua esposa e colega de trabalho, a violinista Sharon (Nina Hoss, estrela dos filmes de Christian Petzold). Durante o trabalho, sua companhia é a assistente Francesca (Noémie Merlant, de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”). A obra implica a preexistência de um caso entre as duas, entretanto a relação passou a ser completamente transacional. Aliás, todas as relações de “Tár” são transacionais, meras trocas de interesses, como em um determinado momento é dito.

Em razão da natureza egoísta das relações da regente, a insensibilidade é uma constante. Assim, os laços são descartáveis e temporários. O maestro assistente não é mais útil, então que ache seu caminho. Uma nova violoncelista gera atração, que ela seja beneficiada. A natureza distante e até vil de “Tár” é a fonte de sua ruína. Os limites entre admiração, obsessão e paixão não parecem claros à personagem. O comportamento, então, torna-se cada vez mais invasivo, insistente e assediador — seja moral ou sexual. A nova musicista da orquestra não é a primeira vítima a lidar com o poder e a influência da maestrina. O fantasma de um antigo caso de abuso atormenta Lydia, na medida em que os efeitos gerados são irreversíveis e podem significar seu ostracismo.

Em “Tár”, o diretor Todd Field constrói a protagonista com um elevado grau de complexidade. O cineasta escreveu o longa pensando em Cate Blanchett e, de certa forma, ela é a grande força motriz para a potência discursiva da obra. A moral desprezível e abjeta da personagem contrasta com sua genialidade e vasta noção musical. Graças à excelente performance Blanchett, é possível observar essa dicotomia. A regente é capaz de ameaçar uma criança, humilhar um estudante, mas também conduz músicos na maior orquestra do mundo e é extremamente sensível à música — a ponto de chamar de “robôs” os que discordam dela nesse ponto. A postura imponente e obstinada — típica dos grandes gênios — que subordina todos a sua autoridade é desmantelada. E, quando Lydia se quebra e se destrói, Blanchett demonstra sua amplitude dramática ao entregar, com a mesma intensidade, a perturbação que prepara para a inevitável queda. As outras atrizes, por sua vez, ficam menores em cena, contudo ainda com boas performances. Hoss traz a introspecção por meio do olhar atento da esposa que vê a maestrina se apaixonar por outra pessoa, e Merlant representa uma subserviência à figura de poder.

No ambiente musical, a discussão central do filme é a separação entre artista e obra. Em uma das cenas mais comentadas do longa, e mais reveladoras da verdadeira Lydia Tár por trás das premiações e louros da vitória, há o questionamento desse impasse. Filmado em um intenso plano-sequência, o qual demonstra controle cênico extremo de Field, um estudante diz não gostar de Bach por ele ser um homem branco, com 20 filhos e que representa o patriarcalismo. O desconforto e a tensão se ampliam quando a maestrina o confronta. Para ela, a ressignificação de ícones por sua vida pessoal é mera bobagem, uma discussão contemporânea cega que despreza os méritos do artista. O conflito obra-artista, do qual ela é totalmente contra, lida, no contexto da obra, com o cancelamento. A cena de Julliard é, portanto, extremamente importante, pois antecipa o próprio desafio de Lydia.

“Tár”, ao longo de suas duas horas e quarenta de rodagem, consolida a protagonista como uma figura controversa que concentra poder, genialidade e perversidade. A performance inspirada de Blanchett contrasta essas características com a sensibilidade e descontrole de quem perde o prestígio. As sequências musicais, que são muitas, quase sempre operam em um tom macro de grandiosidade, sobretudo na orquestra. A câmera observa a força dos movimentos da regente e o esforço dos músicos na execução de uma maneira fascinante e envolvente. Quando a maestrina está sozinha, por outro lado, as notas surgem de forma mínima, com o agudo suave do piano. De certa forma, as variações de intensidade musical (forte, pianissimo) representam também a variação emocional da personagem. Acima de tudo, o show continua, a música segue soando, independente do que aconteça.

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