Triângulo da Tristeza

o cinematógrafo
4 min readFeb 24, 2023

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Yaya, Abigail e Paula | Diamond Films/Divulgação

“O último capitalista que enforcaremos será aquele que nos vendeu a corda”, diz o Capitão Thomas (Woody Harrelson), citando Karl Marx, a um dos tripulantes do cruzeiro, espaço cênico central de “Triângulo da Tristeza”. O longa, além de acumular três indicações ao Oscar, foi vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes. Este foi o segundo prêmio do diretor sueco Ruben Östlund, que antes venceu por “The Square: A Arte da Discórdia” (2017).

A modelo Yaya (Charlbi Dean) e seu namorado, também modelo, Carl (Harris Dickinson) são os primeiros personagens apresentados. A introdução evidencia as distâncias entre o casal e possíveis impasses por questões econômicas. Após isso, tudo são flores. Ambos são convidados para um luxuoso cruzeiro com tudo incluso. Junto deles, outros casais também manifestam o poder das elites. Mas em uma noite tudo isso pode mudar.

A ideia de Östlund de promover uma sátira social da elite europeia já vem desde seu último filme. Em The Square, o restrito ambiente das galerias de arte, aqui, um Iate. No entanto, a direção demonstra tudo, em seus três capítulos, com uma frontalidade absurda. Não há espaços para sutilezas e implicações. A crítica é martelada a todo momento. A própria montagem trabalha a favor disso. É comum que se alterne os ricos aproveitando o cruzeiro e em um corte seco mostre os bastidores, as pessoas (quase invisíveis) que fazem tudo acontecer.

Em razão disso, os passageiros são tratados de uma forma absolutamente idiotizada. Quem foge um pouco disso talvez seja Carl e Yaya. Os dois foram convidados para fazer “publi” no Instagram de toda a riqueza do cruzeiro. A beleza abriu as portas, como pontuam em um dado momento. Por outro lado, os demais são velhos industriais que aproveitam os últimos momentos gastando a fortuna que juntaram ao longo da vida. Portanto, é natural (principalmente para o espectador mais jovem) se afeiçoar ao casal de modelos.

Os vícios e excessos dos tripulantes são antecipados antes mesmo de embarcarem. A chefe da equipe Paula (Vicki Berlin) alerta os trabalhadores para sempre responderem com um “Sim, senhor” ou “Sim, senhora”. Até a generosidade da classe mais abastada é impositiva. Por um mero capricho, uma ricaça consegue com que todos os funcionários tomem um banho no mar. Parece ser gentileza, mas se traveste de ordem no momento em que não há escolha.

Manda quem pode e obedece quem tem juízo, essa é a tônica de “Triângulo da Tristeza”. As dinâmicas de poder que regem as classes são a todo momento respeitadas no ambiente de servidão do cruzeiro, até a quebra de protocolo é obedecida, por exemplo. Apesar do forte contraponto passageiros-funcionários, em momento algum ele é gerador de conflito, em especial pelo controle de Paula dos funcionários.

Nesse contexto de subserviência dedicada, a figura do capitão rompe com o padrão estabelecido. Alcóolatra e marxista (não comunista), ele pouco se preocupa com o bem estar dos tripulantes, a ponto de atiçar o bilionário russo Dimitry (Zlatko Buric) com seus ideais de luta de classes. Ainda assim, ele reconhece a hipocrisia de sua posição, pois mesmo sem se importar com os passageiros, ele continua a serviço deles e do dinheiro.

A roda só é quebrada em um momento crítico quando Abigail (Dolly De Leon) assume o poder. A inserção da personagem e sua posterior importância é um dos grandes méritos da direção. Sua presença, antes imperceptível, torna-se determinante para o desenvolvimento da trama. Nesse microcosmo, Östlund reestabelece as dinâmicas de poder por meio das capacidades e não apenas do poderio financeiro.

O filme, além de ser uma sátira social explícita, foi vendido como comédia. O humor na obra é pontual. A cena escatológica, a mais comentada do longa e que mais dividiu opiniões, não tem um impacto cômico verdadeiro. Pelo contrário, só reproduz a esmo cenas nojentas, talvez em uma tentativa de igualar fisicamente a elite a sua verdadeira essência. Quando os idosos revelam serem donos de uma indústria bélica, o ciúme de Carl, ou a conversa de Thomas e do bilionário russo, todos esses momentos são pinceladas de humor mais sinceras do que a cena em que Östlund mais se esforça em extrair comicidade ao longo do filme.

Triângulo da Tristeza” sofre com repetições e com sua duração. A crítica às elites soa, por vezes, vazia nos dois primeiros atos. A repetitividade da futilidade burguesa torna a crítica inócua, um mero retrato da índole dos ricos, de suas ações e de seu descolamento da realidade. Comprar um Rolex é um pagamento aceitável por uma foto, o jogo na cama remete ao domínio de classes. Contudo, o ato final e a subversão da cadeia social formam o grande triunfo da obra. Ao propor essa virada de roteiro, o cineasta renova o interesse do público e causa mais reflexão acerca das causas das desigualdades do que no exercício da riqueza feito no cruzeiro.

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