Pinóquio de Guillermo del Toro

o cinematógrafo
4 min readMar 1, 2023

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Esse texto foi originalmente postado em Vertentes do Cinema

Gepetto e Pinóquio | Reprodução: Netflix

“A animação se tornou, na mente do consumidor, um gênero. Mas também é uma forma de arte. E, de todas as formas de arte dentro da animação, a mais sagrada e mágica para mim é o stop-motion, porque representa o elo entre o animador e o modelo”, confessa Guillermo del Toro no documentário acerca da produção de “Pinóquio”. No filme, o diretor mexicano, em parceria com Mark Gustafson, reinterpreta o conto clássico, eternizado na animação da Disney, de 1941. Nesta nova versão, entretanto, as mudanças não são apenas visuais, como a técnica usada na animação. Existem, ainda, alterações significativas no enredo que dão um novo espírito à obra, diferentemente do live-action dirigido por Robert Zemeckis.

O que mais destaca a animação de Del Toro das demais adaptações deste conto de fadas é o tom e o stop-motion. O diretor encontra o equilíbrio entre tópicos sensíveis e humor. Distancia-se, portanto, do caráter pessimista da versão italiana de Matteo Garrone, ou da estética sempre-alegre da Disney. Os personagens lidam com a perda, com o luto e o desafio de se aceitar o outro como ele é. Ao mesmo tempo, o regime fascista cresce na Itália, afetando a visão de todos na vila. Toda essa temática poderia transformar o filme em uma obra que tende ao drama. Há, claro, momentos de acentuação emotiva, mas a diversão se apresenta na mesma medida, o jeito leve e inocente de Pinóquio (Gregory Mann) e a sagacidade do Sebastião, o Grilo (Ewan McGregor) contribuem para tal.

Nos aspectos visuais, a técnica de animação possui uma fluidez totalmente diferente de animações 3D. A modelagem dos personagens traz aspectos próprios a cada um, associa características físicas ao comportamento deles. Gepeto (David Bradley) ostenta a fragilidade da idade com a resistência de um carpinteiro. De barba cheia e nariz adunco, é impossível não se afeiçoar a ele. O principal vilão, Conde Volpe (Christoph Waltz), que leva Pinóquio para trabalhar no circo, possui uma face odiosa, com traços exagerados: um nariz longo e cabelos rebeldes que se assemelham a chifres (reforço visual da natureza diabólica do personagem). O protagonista, por sua vez, é um boneco simples, com ranhuras na madeira, mal acabado — devido à condição de sua criação — e com um sorriso onipresente estampado no rosto.

A graciosidade do personagem luta com os fantasmas que pairam na vila. Dentro de casa, Gepeto tenta superar a morte de Carlo. O boneco ajuda no processo do luto, torna-se um amparo para o velho carpinteiro, mesmo sem poder substituir a perda. “Pinóquio Por Guillermo del Toro” tem como mote a aceitação, seja das adversidades ou do outro. Aos poucos, o caráter inocente de Pinóquio e seu ímpeto de questionar tudo ao redor passa a ser mais assimilado e aceito pelos demais. A discriminação por sua natureza inanimada, de madeira, converte-se em prestígio por suas habilidades performáticas com o Conde Volpe. Mas de todas as aceitações, a mais importante é aquela que parte do próprio lar, daqueles que te amam.

Esta animação poderia causar estranhamento nos fãs do cineasta mexicano. Afinal, Del Toro dirigindo uma animação de Pinóquio? O olhar desconfiado cai por terra já nos minutos iniciais. O estilo autoral do diretor é presente e palpável no longa. O caráter fantástico e expressionista se manifesta na obra, vai do adorável ao sinistro. Aqui, há uma metafísica que envolve Pinóquio: seu sopro da vida. Uma fada inexpressiva com um rosto-máscara, quase um anjo, traz o boneco à vida. Em outro momento, a mesma máscara está no rosto da Morte, uma quimera impassível em um reino de areia. A baleia, também, outro elemento fundamental do roteiro original, tem um aspecto odioso e assustador. Sem contar, ainda, com o terror real, manifesto na Segunda Guerra e na ascensão do fascismo, do ridículo Mussolini a doutrinação de crianças.

Esses aspectos trazem camadas interessantes à animação, que no geral é leve, a qual pode (e deve) ser vista pela família inteira. A música, junto do humor, é uma peça-chave para a construção dessa leveza. A trilha, assinada por Alexandre Desplat, traz o sentimento do lúdico e da descoberta, características marcantes para o Pinóquio que, nos seus passos desajeitados, começa a conhecer o mundo e a aprender a viver. O filme é um musical, além de tudo. As canções originais exercem função narrativa e, claro, emotiva. O melhor exemplo é a sensível e melódica Ciao Papa, cantada em um dos momentos de maior tristeza e angústia.

“Pinóquio Por Guillermo del Toro” é uma animação para rir e se emocionar, ela tem a capacidade de tocar dos adultos aos pequenos. É um grande mérito da direção, e de toda a produção, renovar uma história que já parecia esgotada. Del Toro não se omite e traz referências visuais de sua filmografia com um toque infantil. Não gosto de falar sobre “discursos” em filmes, mas aqui, parece que ele existe. E o melhor, é bonito e sensível. Como última recomendação, se o leitor me permite, sugiro assistir, logo em seguida, ao documentário da produção do filme. Há por traz de todo impacto visual e emocional um trabalho hercúleo de todos os artistas para fazer tudo aquilo possível. Como diz o diretor, na frase que abre o texto, o stop motion é sagrado e mágico, e é lindo poder ver isso

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