Noite Passada em Soho

o cinematógrafo
5 min readNov 29, 2021

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Anya Taylor Joy e Thomasin McKenzie são as estrelas do novo longa de Edgar Wright

O diretor inglês Edgar Wright faz seu retorno às telas de cinema com um intrigante terror psicológico. Seu último longa tinha sido a ação Em Ritmo de Fuga, de 2017. Em Noite Passada em Soho, Wright estreia em um gênero que ele ainda não havia trabalhado. Apesar de ser um terreno relativamente novo ao diretor, ele não peca e traz uma narrativa envolvente que mantém o espectador tenso e preso a todo o momento.

Ellie (Thomasin McKenzie) é uma jovem garota do interior da Inglaterra. Com um futuro brilhante na moda, Ellie recebeu uma bolsa de estudos para estudar Moda em uma Universidade de Londres. A garota tímida do interior logo sente o choque de se mudar para a capital inglesa. No dormitório da faculdade, Ellie é tratada com indiferença e até mesmo com maldade por Jocasta (Synnøve Karlsen).

Decidida a achar conforto e paz, Ellie procura por uma quitinete em que ela possa ficar sozinha. A garota acha um quarto onde morar, perto de um bistrô. A locatária, Miss Collins (Diana Rigg, em seu último papel), estabelece uma série de restrições à jovem, mas que não parecem prejudicá-la. Na primeira noite de Ellie no novo quarto, algo misterioso acontece. A garota é transportada para a Londres dos anos 60 e ela passa a viver e acompanhar Sandie (Anya Taylor Joy), uma ambiciosa aspirante à cantora.

Uma das marcas do filme é a dialética entre o contemporâneo e o vintage. Desde o início do longa presenciamos isso, a própria Ellie é inclinada ao estilo dos anos 60. As músicas que ela ouve, em sua vitrola, e as vestimentas que ela costura remetem a esse período. A própria personagem já demonstra esse apreço ao passado no tempo presente. Quando ela viaja até o passado, a primeira experiência é mágica. O vintage não está apenas nas canções e roupas que ela gosta, ela está inserida naquele período.

O trabalho de design de produção e figurino conseguem com bastante eficácia transportar o espectador, junto de Ellie, para a Londres dos anos 60. A recriação histórica da noite londrina é feita com bastante neon e cores vibrantes, o vermelho é uma das cores mais presentes nestes cenários. Sandie se veste elegantemente e seu figurino do século XX inspira os croquis de Ellie no presente.

A interação entre o moderno e o vintage é bem delimitada por meio da seleção musical de Edgar Wright. Já na sequência inicial do filme, há a presença de elementos sessentistas, como os pôsteres de filmes no quarto de Ellie — Bonequinha de Luxo é um deles — e a canção que ela canta e dança. O diretor guia a narrativa por meio da música. Como em seu último filme, aqui a música é um elemento importante da personalidade da personagem. Algumas canções que tocam ao longo da exibição são (There’s) Always Something There to Remind Me, de Sandie Shaw e I’ve Got my Mind Set on You, de James Ray.

Entretanto, a música que recebe maior peso e importância em Noite Passada em Soho é Downtown, de Petula Clark. Não só para Ellie a música possui um papel importante, mas também para Sandie, que sonha em ser cantora. A performance de Anya Taylor Joy cantando a canção é sublime, ela canta acapella e consegue emocionar e arrepiar o espectador. A cena se assemelha com elementos lynchianos: uma mulher loira, enquadrada em close, cantando uma música distante temporalmente do nosso tempo presente.

O trabalho técnico na fotografia também é soberbo. O diretor de fotografia, Chung-hoon Chung, faz um uso contínuo do neon. Os tons azuis, brancos e vermelhos, do letreiro do bistrô, iluminam o quarto de Ellie e antecipam sua transição do presente para o passado. Nas cenas ambientadas nos anos 60, o neon também ganha destaque, sobretudo o vermelho, que carrega uma grande carga de tensão ao longo de Noite Passada em Soho.

Para estabelecer a transição e dualidade entre Ellie e Sandie, existe a presença absoluta de espelhos nas composições. A alternância de reflexos das duas personagens estabelece uma relação de unidade entre elas. Ellie consegue viver a vida de Sandie, e o recurso dos espelhos é o que mais evidencia essa ideia do diretor. A câmera se move com certa leveza, inclusive nos planos sequências. A todo momento ela percorre o espaço. Em uma dada cena, a câmera dança com as personagens e a fluidez da movimentação garante as trocas de Ellie e Sandie como pares de dança de Jack (Matt Smith). Edgar Wright é conhecido por seu primor técnico, e aqui não é diferente, o trabalho de câmera, os cenários e as atuações de luxo das atrizes demonstram um elevado nível de produção.

As inspirações de Wright aparecem com bastante frequência. Para a construção do terror, ele compartilha de elementos de filmes de zumbis, inclusive ele já dirigiu um filme deste gênero, Todo Mundo Quase Morto (2004). Certos elementos de Noite Passada em Soho remetem ao terror psicológico de Roman Polanski, Repulsa ao Sexo (1965). A construção do terror por Wright acompanha o grafismo, rostos disformes e a sobreposição de imagens na montagem.

As atuações no filme também merecem destaque. Os personagens de apoio não são tão aprofundados, mas fazem o papel narrativo necessário para o diretor. Jocasta, por exemplo, desde o início consegue atrair o desprezo do espectador. Sandie, interpretada por Anya Taylor Joy, lida bastante com a decepção e objetificação. Todo o subtexto acerca da violência contra a mulher e alienação perpassa pela personagem.

Thomasin McKenzie percorre pela timidez e desespero com muita expressividade

A atuação de Thomasin McKenzie é espetacular. A personagem dela, Ellie, transita por três estados de espírito: a timidez, a confiança e o desespero. O primeiro, a timidez, diz respeito a quando a garota chega à Londres. Sua atuação é bastante introspectiva, e a personagem não se abre aos seus colegas. A confiança surge quando ela começa a viajar todas as noites para a Londres nos anos 60. Seus croquis ganham a atenção da professora, ela muda o visual e suas relações com outras pessoas se desenvolvem. O desespero é presente no último terço do filme, as visões de Ellie se misturam à realidade, e a expressividade da garota é extrapolada, sobretudo pelos olhos que pedem por ajuda a todo momento.

Noite Passada em Soho impacta o espectador e controla efetivamente sua carga de tensão até a resolução do conflito nos minutos finais. A confusão mental é bem construída, o pânico de Ellie é bastante perceptível, o que é um grande mérito da atriz. O diretor consegue causar empatia no seu público que teme tanto por Ellie quanto por Sandie ao longo das quase duas horas de filme. Noite Passada em Soho está em exibição nos cinemas, a classificação indicativa é para maiores de 16 anos.

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