Marte Um

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Cícero Lucas interpreta Deivinho. Foto: Reprodução/Embaúba Filmes

Marte Um, filme realizado por Gabriel Martins, é o representante do Brasil na corrida do Oscar 2023. Entretanto, esse não é, nem de longe, o principal motivo para assisti-lo. O longa parte da perspectiva familiar e do cotidiano para refletir sobre sonhos, traumas e tragédias. Tendo em vista a temática, é natural que o teor emocional seja alto.

Em Minas Gerais, uma família negra e periférica lida com dilemas e com a tentativa de se manter unida a despeito das dificuldades. Deivinho (Cícero Lucas), o filho mais novo sonha em ser astronauta, enquanto seu Wellington (Carlos Francisco) deseja que o garoto se torne jogador profissional. Eunice (Camilla Damião), filha mais velha, quer sair de casa e morar com sua namorada. A mãe, Tércia (Rejane Faria), tenta preservar a família, mesmo esquecendo da própria saúde.

Com essa trama simples, Gabriel Martins consegue mergulhar nos problemas de cada um dos personagens. O filme encontra equilíbrio para alternar os núcleos, é capaz de gerar interesse e intimismo do público com cada uma dessas histórias. Esse mérito passa pela montagem, que também é assinada pelo diretor. Nenhum desafio, apesar das particularidades, parece menor que o do outro, todos de fato impactam os personagens e, posteriormente, a relação familiar.

Ainda sobre a montagem, aproveito para destacar a noção dicotômica estabelecida entre o ambiente externo (trabalho, rua, futebol e balada) e interno (a casa, a família). O diretor contrapõe os personagens nesses diferentes espaços. Assim, ele demonstra como o que acontece fora impacta o interior. O melhor exemplo é uma cena em que comemoram o aniversário de Tércia e o corte alterna para o dia seguinte, no trabalho. Além de demonstrar esse conflito, ainda mostra como a diversão logo é interrompida pelo trabalho, principalmente para as classes mais baixas.

É bem claro que Marte Um trata de sonhos e paixões, principalmente nos mais novos. Eunice quer viver com sua namorada, se mudar e se tornar independente. Deivinho, mesmo sendo craque, não quer fazer do futebol sua profissão. A verdadeira paixão é pelo espaço, desde o céu que ele observa até os vídeos que ele assiste no YouTube.

De certa forma, os dois representam contrariedade ao que os pais desejam para os filhos. A filha é homossexual, mas seus pais não sabem. O filho não quer o sonho de seu pai e mantém o verdadeiro para si. É por isso também que os irmãos encontram cumplicidade para revelarem um ao outro seus desejos mais sinceros. Eunice mostra uma foto de Joana para o irmão, enquanto Deivinho, no meio da noite, revela que quer ser astrofísico e participar da missão Marte Um, para colonizar o planeta.

O conflito geracional presente faz parte do realismo da obra. Os diálogos são dotados de muita verossimilhança, causam identificação no espectador. A irmã que reclama do irmão não ajudar nas tarefas de casa, o pai fanático pelo futebol (no caso, pelo Cruzeiro) e, por fim, as discussões. Somado a isso, existe a presença de fortes elementos culturais brasileiros, como o próprio futebol, a música e as festas. Com isso, o realismo de Marte Um dialoga com o público, estabelecendo vínculos emocionais.

Além da força realista do filme, as próprias situações que ocorrem no filme são suficientes para impactar o espectador. A vida é entremeada de felicidades e tristezas. Os planos às vezes são frustrados pelo mero acaso, mesmo que pareça algo premonitório, ou que você atrai os problemas. É assim que Tércia lida com uma onda de pequenos acidentes que acontecem com ela em uma semana. Ela se sente culpada por esses eventos, é a personificação da superstição e misticismo naquela família.

A fotografia do longa opera sempre em alto padrão. Nos jogos, há o uso da câmera na mão. Nas festas, há um bom aproveitamento da luz e do neon. Em momentos dramáticos, usa-se os closes. Contudo, os planos mais bonitos são alcançados durante a noite. Quando todos vão dormir e a fraca luz azul ilumina os rostos. Com essa disposição é que se filma os irmãos conversando sobre o verdadeiro sonho de Deivinho ou também uma das tragédias familiares.

Apesar da representação realista do cotidiano da família, com traumas e infelicidades, Marte Um traz ainda um discurso esperançoso. Se opondo ao viés cru “a vida como ela é”, a obra resgata o espírito sonhador e esperançoso do brasileiro que “não desiste nunca”. Essa análise serve tanto para a esfera familiar quanto profissional. Ao longo das intensas quase duas horas, o espectador acompanha os problemas, mas compartilha do olhar sonhador de Deivinho.

Marte Um é um lindo filme. É sensível, emociona e possui um grande potencial de criar identificação com seu público, comigo foi assim. A interpretação naturalista de Cícero Lucas também ajuda a construir esse sentimento. As situações desenvolvidas ao longo do roteiro misturam a realidade de luta, que boa parte da sociedade enfrenta, com a visão esperançosa de que tudo pode mudar, ou melhor, que tudo vai passar.

Marte Um está disponível nos cinemas.

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