Amor, Sublime Amor

o cinematógrafo
4 min readMar 16, 2022

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Ansel Elgort e Rachel Zegler vivem romance com contornos shakesperianos

Adaptar uma obra já consagrada não é fácil, principalmente quando se trata de um dos mais icônicos musicais de Hollywood. Para Steven Spielberg, isso não é problema. O experiente diretor adapta Amor, Sublime Amor primorosamente, trazendo um novo vigor para a história. O musical da Broadway, cuja estreia se deu em 1957, foi primeiramente adaptado para o cinema em 1961. Na ocasião, fora um sucesso estrondoso, vencedor de 10 Oscars, e até hoje figura entre os cinco filmes com mais estatuetas.

A versão de Spielberg não deixa nada a desejar se comparado ao seu predecessor. A fama do diretor o precede, ele é um dos mais celebrados diretores da história de Hollywood. Com sucessos absolutos como E.T. e Tubarão, Spielberg mostrou que dá para ser autoral nos blockbusters. Comparações surgem automaticamente em adaptações, mas Spielberg, mesmo dirigindo pela primeira vez um musical, consegue encontrar sua própria melodia, sua própria voz. Amor, Sublime Amor é para Spielberg uma demonstração do seu afeto pela Hollywood clássica, é um tributo ao cinema. Ele encontra equilíbrio entre conservar e inovar.

Dois jovens de grupos rivais se apaixonam e têm seu amor interrompido por rixas e brigas. Este enredo parece familiar, não? A inspiração em Romeu e Julieta é explícita, em vez de Capuletos e Montecchios, rivalizam entre si Jets e Sharks. A primeira é uma gangue de garotos brancos, que moram em uma região decadente e vê seu lugar sendo tomado aos poucos. O outro grupo é formado por jovens porto-riquenhos que buscam seu espaço na América. Tony (Ansel Elgort), branco, e Maria (Rachel Zegler), latina, tentam fazer o amor florescer neste terreno aparentemente infértil.

Um avanço bastante perceptível e uma mudança aparente em relação à versão de 61 é uma abordagem mais firme dos temas do musical. Em primeiro lugar, existe representatividade. O elenco que interpreta os porto-riquenhos ou são nativos do estado, ou são descendentes de nacionalidades latinas. Spielberg representa o West Side como uma região arruinada, em processo de reconstrução, retirando a população que lá vive. O processo é visto pelas placas que, em frente às ruínas, anunciam um próspero futuro. O design de produção constrói o bairro porto-riquenho por entre becos, com bandeiras levantadas e uma miríade de roupas estendidas nos varais. Nisso, com a segregação entre bairros de brancos e de latinos, o filme estabelece um dos argumentos centrais do musical: a xenofobia e o racismo.

Ainda nas diferenças dos filmes que distam 70 anos, existe representatividade LGBT. Certos temas que são explorados nessa versão seriam impossíveis de serem discutidos a fundo em 1961, até mesmo por uma questão histórica. Spielberg os explora devidamente. O personagem Anybodys (Iris Menas), que também é presente no filme de 61, é um homem trans. Curiosamente, este personagem rodeia os Jets, mas nunca é visto como parte do grupo, é maltratado, escarnecido e discriminado. É simbólico que tal personagem ande pelas sombras, às margens, e que observe tudo escondido.

É impressionante constatar que este é o primeiro musical de Spielberg. A direção dele é bastante segura, utiliza bem dos elementos musicais para causar emoção. Para alcançar o resultado para além de satisfatório, o diretor contou com uma equipe técnica com bastante excelência. Os números musicais são extremamente bem compostos e coreografados. A sinergia entre o elenco e o vigor dos movimentos é digno de nota. A câmera de Janusz Kaminski está sempre a acompanhar as performances, a fluidez da movimentação segue os passos enérgicos dos atores. Nas canções, Spielberg reinventa os números, mudando os espaços e dando mais dinamismo às performances. A sequência de Tonight, entretanto, segue intocada, continua nas escadas de emergência do prédio e com a mesma conexão entre Tony e Maria.

Outro elemento de destaque no longa é o uso das cores. Os figurinos, estonteantes evocam uma vivacidade com as cores, como exemplo temos o vestido de Anita (Ariana DeBose) na performance de America — que inclusive apresenta um misto de força e graciosidade. Os cenários internos também são coloridos. O estabelecimento de Valentina (Rita Moreno) possui um forte neon amarelo e uma frialdade azul. Na casa de Maria, seu irmão Bernardo (David Alvarez) e Anita, as paredes são coloridas, esmaecidas, mas coloridas. O que dá vida ao ambiente são os tecidos vermelhos, amarelos e verdes de Anita que repousam na sala.

Se antes falei sobre o trabalho de câmera de Kaminski nas sequências musicais, o primor se estende ao longo de toda a rodagem de Amor, Sublime Amor. No baile, um dos momentos de maior plenitude do filme, a câmera antes dinâmica torna-se tranquila. Quando Maria e Tony se encontram pela primeira vez, as luzes se intensificam, o azul e rosa iluminam o futuro casal em uma espécie de realce dramático. Um recurso utilizado a esmo é o flare quando se há uma forte incidência de luz. A câmera acompanha os personagens, se distancia pouco, e quando o faz é apenas para reafirmar a noção de coletividade e numerosidade dos grupos.

No campo das atuações, Zegler estreia no cinema. Ela consegue transmitir a paixão e inocência de Maria e, além disso, ostenta uma voz angelical, fator de extrema importância em musicais. Mike Faist que interpreta Riff, líder dos Jets, transita muito bem entre uma selvageria juvenil de gangue e uma devoção e respeito a Tony. Todavia, a maior merecedora de elogios é Ariana DeBose como Anita. Primeiramente por conseguir reproduzir a força e ironia da personagem com carisma. Depois, há de se dizer que a entrega emocional da atriz beira o natural.

Amor, Sublime Amor reverencia o original e consegue superá-lo. O respeito é demonstrado na preservação de certas sequências e pela presença de Rita Moreno — a atriz interpretou Anita em 61. Spielberg estreia no gênero musical com muita firmeza e explorando com afinco as discussões suscitadas no texto. Amor, Sublime Amor foi indicado a sete categorias no Oscar — Melhor Filme, Direção, Atriz Coadjuvante (Ariana DeBose), Som, Design de Produção, Fotografia e Figurino — e está disponível na Disney +.

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