A Mão de Deus

o cinematógrafo
6 min readDec 31, 2021

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“Por mim, o caminho para a cidade sofredora. Por mim, o caminho para a dor eterna. Por mim, o caminho que corre entre os perdidos.” Essa frase, dita em um momento chave do filme, demonstra o tom poético que Paolo Sorrentino imprime ao seu passado. As lembranças são um acalento para o ser. Paradoxalmente, em um um mesmo momento a memória pode trazer alegria e também tristeza, e essa ambiguidade é bastante presente em A Mão de Deus.

A Nápoles dos anos 80 está para Sorrentino como Rimini dos anos 30 para Fellini em sua obra Amarcord (1973). Ambos os diretores olham para o passado com nostalgia e carinho, prezam pelo caráter pueril do amadurecimento e das descobertas. Diferentemente de Fellini, Sorrentino não adota o tom burlesco e fantasioso para relembrar sua história. O tom proposto pelo diretor repousa sobretudo em um realismo poético. De qualquer forma, Sorrentino não nega a influência do lendário diretor italiano e até o cita e o referencia.

No sul da Itália, em Nápoles, um jovem chamado Fabietto Schisa (Fillipo Scotti) vive com sua família. Apaixonado por futebol, ele e todos os outros esperam com grande ansiedade pelo anúncio de Diego Maradona como novo jogador da Napoli. Paralelamente ao seu amor pelo futebol, o jovem se interessa pelo cinema e em segredo nutre o sonho de futuramente tornar-se um diretor. A história de amadurecimento de Fabietto é circundada por confraternizações da família e também por conflitos familiares.

Como toda família napolitana, a família Schisa é bastante unida e grande. É visível a diversão com que eles estabelecem suas relações. Na casa de praia, tudo é engraçado e extremamente divertido. Eles fazem troça uns dos outros, como de um novo integrante da família, que possui uma máquina para auxiliar sua fala, e também da grande matriarca irritadiça. A tarde acaba com um mergulho no mar, todos no mesmo barco e a família sempre junta.

O núcleo familiar imediato de Fabietto é formado por seus pais, seu irmão e sua irmã Daniela, que estava no banheiro. Saverio (Toni Servillo), pai de Fabietto, é alguém com bom senso de humor e que carrega a vida com leveza, mesmo com problemas conjugais. Ele e Fabietto não se cansam de fazer piadas e até mesmo seus conselhos para o filho são divertidos. Maria (Teresa Saponangelo) é uma mãe atenciosa e amorosa. Ela também possui um humor apurado e enxerga a vida com leveza. Marchino (Marlon Joubert) é o irmão de Fabietto, ele é quem ampara o irmão mais novo nos momentos de maior dificuldade e a relação dos dois é repleta de cumplicidade.

Dos outros familiares, quem exerce uma importância narrativa é a tia Patrizia (Luisa Ranieri). A figura da tia, para Fabietto, é fonte de desejo. Ele se afeiçoa bastante a ela e, pode-se dizer que é apaixonado por ela, entretanto de uma maneira platônica, como quem reconhece a impossibilidade de desenvolvimento do sentimento rodrigueano. A tia Patrizia possui alguns problemas psicológicos e toda a sequência surreal do início passa por ela. O lustre caído e o mongezinho são imagens hipnotizantes e intrigantes.

A figura de Maradona, que inclusive dá título à obra, é tratada com muita reverência. O caráter divino de Maradona é algo palpável em A Mão de Deus. A sua vinda para a Napoli representou o triunfo da cidade do sul da Itália. O filme tece sutis comentários acerca da discriminação que o povo napolitano sofria pelos demais italianos, principalmente das cidades ao norte. São poucas as linha de diálogo que evidenciam isso, mas ainda estão lá. A contratação de Maradona foi um grande evento para a população de Nápoles, o melhor jogador do mundo à época escolheu representar o azul e branco da Napoli, abandonando o Barcelona.

Para Fabietto, assistir Maradona torna-se uma obsessão. Seu quarto é todo decorado com pôsteres do craque e com flâmulas do time. A cena que mostra a Copa de 1986 representa o carinho e respeito que Maradona obteve dos napolitanos. Italianos torcendo pela seleção argentina em razão do craque. Pode parecer, em um primeiro momento, que Maradona não é tão relevante narrativamente e serve apenas como pano de fundo para o drama de amadurecimento de Fabietto, contudo a interferência indireta que Maradona exerceu na vida do protagonista é determinante para a trama.

O filme de Sorrentino transita facilmente por diversos tons ao longo de sua rodagem. Na primeira hora, A Mão de Deus carrega sua narrativa com bastante leveza e humor. Maria é uma mestre das pegadinhas e a personagem provoca um riso fácil, em especial na cena do trote para sua vizinha. Saverio também não fica atrás ao fazer piadas com a vizinha condessa que se parece com o Papa João Paulo II, só que “menos sexy”. Na casa de praia também é tudo muito agradável e o espectador se sente como alguém daquela família, se divertindo como eles.

Na segunda metade do filme existe essa virada e o filme adota o drama como motriz. Por se tratar do amadurecimento de Fabietto, um coming-of-age, mergulhamos cada vez mais neste personagem e nas suas emoções. A tristeza no olhar de Fillipo Scotti emociona o espectador. Existe uma construção acertadamente cuidadosa desde a tragédia até o colapso de Fabietto. A sensibilidade de Sorrentino mescla a tristeza e a esperança para o futuro na figura do protagonista. Em uma cena, uma personagem diz a Fabietto que ele deve “olhar para o futuro” e seguir em frente. Essencialmente, o amadurecimento representa transição de um momento para o outro, uma mudança interna que acarreta no desenvolvimento do ser e em A Mão de Deus, Sorrentino consegue colocar essa ideia na tela.

A direção de fotografia da Daria D’Antonio explora bem as paisagens naturais de Nápoles. A imagem de Patrizia em contraluz nos explica o porquê da paixão juvenil de Fabietto. A câmera é inquieta, se move em planos sequências e panorâmicas longas. A repetição da transição de um corredor escuro para o terraço iluminado, representa também o amadurecimento futuro do protagonista. As composições são simétricas e intrigantes, desde o já citado lustre no chão até um homem de cabeça para baixo suspenso por uma corda.

As cores também são importantes no filme. O verde como paisagem natural é bem presente na primeira metade do longa. O vermelho aparece pontualmente, em elementos como figurino e design de produção. O tom mais usado e explorado é o azul, que remete tanto às cores da Napoli, quanto ao mar que cerca a cidade de Nápoles.

O cinema é referenciado e homenageado por Sorrentino. A influência que essa arte exerceu na juventude de Fabietto/Paolo é explorada em um nível micro e macro. Em um nível menor, existem referências a Fellini, quando Marchino faz um teste para figuração em um longa do maestro; e também a Franco Zefirelli, envolvendo uma das pegadinhas de Maria. Em um nível macro, existe a onipresença do VHS de Era Uma Vez na América (1984) e a influência do diretor Antônio Capuano na vida do protagonista.

A Mão de Deus é íntimo, sensível e emocionante. Sorrentino trabalha bem com a veia humorística e o drama acentuado. Ao longo das duas horas e dez de duração, me vi imerso e preocupado com Fabietto Schisa, me vi encantado com a presença de Maradona e me senti acolhido pela narrativa. O envolvimento que o espectador pode experimentar no longa provém da carga pessoal e do cuidado de Sorrentino em transcrever suas memórias em um belíssimo filme. A Mão de Deus está disponível na Netflix e foi um dos pré selecionados ao Oscar na categoria de Melhor Filme Internacional, como representante da Itália.

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