A Lenda do Cavaleiro Verde

o cinematógrafo
4 min readSep 28, 2021

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Dev Patel interpreta Sir Gawain, um dos cavaleiros das lendas do Rei Arthur

Em um salão escuro a figura de um cavaleiro senta-se sozinha. A câmera se aproxima em um dolly, e a cabeça do cavaleiro começa a pegar fogo. Esta é a primeira cena de A Lenda do Cavaleiro Verde, e seu diretor, David Lowery, busca atingir um sentimento do público: o fascínio. A estética fantástica que será a tônica do filme é apresentada nessa primeira cena, fica evidente que Lowery traz uma roupagem diferente para essa história do Ciclo Arthuriano, ele se distancia do caráter épico e explora novamente a contemplação como em outras obras suas.

Meu primeiro contato com o diretor foi em seu filme Sombras da Vida, originalmente A Ghost Story (2017). Em razão disso, acreditei que o caráter contemplativo seria reproduzido também em A Lenda do Cavaleiro Verde. De certa forma, Lowery retoma a contemplação neste filme. Embora seu primeiro ato contenha um ritmo rápido, no restante do filme, presenciamos um ritmo moderado e lento, mas com a história bem delimitada.

Gawain (Dev Patel) é o sobrinho do Rei Arthur (Sean Harris), é um jovem que busca construir sua história e se tornar uma lenda. Ele ainda não é cavaleiro, entretanto, em um Natal, ele finalmente tem a chance de mostrar seu valor. No salão do rei, em um banquete, um gigante adentra os portões e desafia qualquer um dos cavaleiros a golpeá-lo, com a única condição que, depois de um ano, ele pudesse retribuir o golpe. O gigante com a pele de árvore, que porta um enorme machado, é o Cavaleiro Verde. Dentre todos os presentes, Gawain é o único a ter coragem de enfrentá-lo. Após golpear o gigante, o Cavaleiro Verde pega sua cabeça do chão e lembra Gawain de que daqui um ano ele deveria encontrá-lo na Capela Verde. A partir dessa trama, acompanhamos Gawain em sua busca pelo Cavaleiro Verde um ano depois.

A experiência cinematográfica de A Lenda do Cavaleiro Verde é única. O diretor é bastante autoral e suas escolhas estéticas e até narrativas — já que ele também é o roteirista — demonstram o caráter singular da obra. Nos aspectos técnicos de figurino, ambientação e design de produção, o filme é soberbo. Há o aproveitamento das ruínas medievais da Europa, que contribuem para a verossimilhança. Quanto ao figurino, o trabalho técnico faz questão de diferenciar seus personagens, desde os nobres, até mesmo os plebeus, todos usam peças diferentes. Outro contraste se estabelece nas roupas de Morgana (Sarita Choudhury), a feiticeira e suas acólitas vestem-se com vestes longas que remetem aos xamãs.

Lowery consegue transmitir uma dialética entre o real e a fantasia. Para aqueles personagens, a magia não os surpreende, apenas em casos extremos como raposas falantes e cabeças decepadas que falam. A iluminação é uma ferramenta importantíssima na construção atmosférica fantástica, os tons de verde e azul são os preferidos e, quando estão em cena, sabemos que a Magia também está em cena. Gigantes aparecem e o público não sabe ao certo se é real ou não. Esse status de flutuação entre real e fantástico acontece com Gawain e também com quem assiste.

Ao longo do filme, símbolos esotéricos aparecem a esmo, pentagramas, rituais com velas vermelhas, uma cinta mágica e afins. O uso desses elementos contribuem para o senso de mágico e fantástico. Às vezes, ele se manifestava na própria fotografia. Em uma determinada cena, a câmera se comporta como um caleidoscópio e aumenta mais a estética fantasiosa. No mesmo capítulo, temos uma velha vendada, misteriosa e imóvel. O estranhamento acompanha o público ao longo da rodagem.

O roteiro aposta em uma divisão por capítulos, o que, essencialmente, dá uma dinamicidade narrativa maior para o filme. A estrutura é quase como uma quest de RPG, com exceção do primeiro ato. Na realidade, o primeiro ato é bem diferente do restante de A Lenda do Cavaleiro Verde. Nele, o ritmo é acelerado, até mesmo na fotografia que usa whip-pans e cortes abruptos. A partir do segundo ato, o ritmo se torna mais lento e conhecemos cada uma das quests de Gawain. Ele encontra salteadores, mortos vivos, uma raposa falante e um lorde que lhe dá abrigo. Todos esses capítulos levam ao final, o encontro com o Cavaleiro Verde. Dessa forma, é bem estabelecido o destino de Gawain, desde o início sabemos o seu objetivo.

A fotografia é tanto contemplativa quanto incomum. Lowery usa planos sequência longos que acompanham Gawain em seu cavalo, e na floresta há uma preferência pelo contra plongée para mostrar a imensidão e altura do ambiente. A contemplação é atingida em planos abertos que ressaltam o ambiente natural e o incomum se dá, principalmente, nas cenas no castelo do Lorde.

Outro ponto de destaque do filme é a atuação de Dev Patel. Ele está praticamente sozinho no decorrer do filme e então, tudo se apoia nos ombros dele. Dev consegue transmitir a insegurança de Gawain em percorrer uma jornada para ter seu golpe retribuído, mesmo sabendo seu destino, ele quer manter sua promessa ao Cavaleiro Verde, ele quer manter sua honra. O semblante dele muda. Quando jovem, ele demonstra sua inexperiência e até receio, ao passo que, quando adulto, ele está sisudo e imponente. Nos momentos de silêncio, Dev também consegue evocar emoções sem o auxílio de diálogos.

A Lenda do Cavaleiro Verde é uma experiência singular. O diretor faz uma releitura fantástica da lenda. Ele adequa elementos de linguagem a sua proposta de misturar o real com o mágico. O estranhamento do público surge como que natural, apesar disso, é plenamente possível abraçar o estranho e se sentir fascinado com a obra.

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