A Filha Perdida

o cinematógrafo
4 min readJan 7, 2022

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Olivia Colman é Leda, uma mulher de meia idade que se vê cercada por suas memórias como mãe

Logo em sua estreia na direção, Maggie Gyllenhaal encara o desafio de adaptar a obra homônima de uma das maiores escritoras da contemporaneidade, a enigmática e misteriosa Elena Ferrante. Gyllenhaal consegue desenvolver bem a história que é dramaticamente densa. A diretora consegue articular bem os flashbacks e as passagens no tempo presente. Para esse resultado satisfatório, Gylenhaal conta também com as excelentes performances do trio Olivia Colman, Jessie Buckley e Dakota Johnson.

Leda (Olivia Colman) é uma professora universitária de literatura italiana comparada. Em suas férias, na Grécia, a tranquilidade esperada dá vez a uma sombria revisita ao passado. Ao ver Nina (Dakota Johnson) e sua pequena filha Elena (Athena Martin), Leda se identifica com aquela jovem mãe e relembra sua juventude como mãe. Uma série de acontecimentos estranhos tomam conta da trama, entre eles, o sumiço da boneca de Elena, que é causador de picos de tensão ao longo do filme.

O primeiro conceito que se estabelece em A Filha Perdida é a tranquilidade interrompida. Mesmo estando em uma paradisíaca praia na Grécia, Leda não encontra a paz almejada. Seja pelo som do farol à noite, seja pela cigarra que invade seu quarto e perturba seu sono. Na praia, o silêncio é quebrado quando uma família bastante espaçosa e barulhenta se organiza para festejar. Leda é bastante resignada e nem de seu lugar ousa se mover, mesmo quando alguém pede. Ao longo da trama, vários são os momentos em que a paz de Leda é interrompida. Algumas vezes são pessoas que a interrompem e em outras são suas memórias.

Um ponto importante que o filme estabelece é a identificação que Leda passa a ter com Nina. Como uma observadora externa, Leda consegue se identificar com àquela mulher. O primeiro momento em que isso ocorre é no breve sumiço de Elena, a filha de Nina. As memórias de um dia em que Leda perdeu uma de suas filhas começam a assombrá-la. Ela se compadece do sentimento aterrador de perder sua filha, mesmo que por pouco tempo. Posteriormente, Leda percebe que a dificuldade que Nina tem de criar Elena é a mesma que ela teve tempos atrás com suas filhas Bianca e Martha. Até mesmo o relapso e a traição são fatores que ambas as mães compartilham.

A direção de Maggie Gyllenhaal é bastante segura. Apesar de ser sua estreia na direção, a diretora consegue submeter os elementos da linguagem cinematográfica como ferramentas para evocar emoções. A trilha sonora possui um tema principal bastante característico que se repete em momentos pontuais, como o início e o fim. A montagem nos flashbacks da praia configuram um aspecto desesperador. Captando o desamparo que uma mãe teria ao perder uma de suas filhas.

A fotografia também é usada como ferramenta dramática. A preferência por enquadramentos mais fechados nas atrizes promove uma maior intimidade e proximidade do espectador com as personagens. Os closes se estendem também para objetos que possuem um peso dramático na narrativa, como a boneca de Elena. Além dessa proximidade promovida pela fotografia, muitas vezes, a câmera funciona subjetivamente, compartilhamos a visão de Leda e vemos as demais pessoas da praia afastadas.

A submissão da câmera à visão de Leda é explicada pelo protagonismo da personagem. Leda é quem move a trama, tudo se estrutura ao redor dela. A performance de Olivia Colman é desde o primeiro ato excepcional. A atriz parece ter uma facilidade de interpretar pessoas atormentadas por si mesmas. Gyllenhaal também tem uma sorte grande de, já em seu primeiro longa como diretora, contar com uma atriz do calibre de Colman. A Leda de Colman é bastante firme em suas palavras e ações com outras pessoas, mas quando sozinha, ela é vulnerável, ela chora e sente pelo passado. Isso difere a Leda de Colman da Leda de Buckley.

O roteiro se estrutura em duas linhas temporais: o passado e o presente. Nos flashbacks, Jessie Buckley interpreta Leda. A montagem consegue desenvolver bem o que cada memória representa para a Leda do presente. A jovem Leda era um pouco negligente, existia um constante embate de suas aspirações profissionais e acadêmicas com a sua vida de mãe. Mais do que tudo, os flashbacks revelam porquê Leda se identifica com Nina e nos ajudam a entender a Leda, em si. O peso dramático nas sequências do passado é acentuado, a performance de Buckley é responsável por isso.

A conturbada maternidade de Leda quando jovem causa remorsos e arrependimentos no seu presente. Ao lembrar das dificuldades, Leda tenta se prender aos momentos bons com as filhas, para isso ela usa de alguns amuletos. É simbólico que o principal amuleto seja a boneca de Elena, a qual relembra Leda de um episódio em que ela presenteou suas filhas com uma boneca de sua própria infância. Ela se apega àquele objeto, pois ele reafirma que ela já foi — e ainda é — uma mãe. A boneca é uma guardiã das boas memórias que ela tem de suas filhas. Em certo momento ela diz não se lembrar das filhas, mas ela se nega a lembrar das brigas e da sua incapacidade de lidar melhor com as crianças. As boas memórias se escoram em coisas simples, como um simples descascar de uma laranja.

A Filha Perdida versa sobre as dificuldades de ser mãe. Não são todas as mulheres que conseguem exercer esse papel, pois ele não é fácil. Existe um peso em torno da maternidade, sobretudo nas decisões que Leda tomou quando jovem e como isso afetou a relação com suas filhas. No fundo, todas as pessoas pensam que poderiam ter feito melhor, e Leda não é diferente. Essa reavaliação e revisitação do passado é a força motriz para o drama em A Filha Perdida. O novo filme de Maggie Gyllenhaal possui 2h2min de duração e está disponível na Netflix.

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